Comércio de selos



Para quem examina montes de velhos selos coleccionados, às vezes um selo já há muito fora de circulação, sobre um frágil sobrescrito diz-lhe mais que a leitura de dúzias de cartas. Por vezes, encontramo-los sobre postais ilustrados e já não sabemos que fazer: deveremos descolá-los ou guardar o postal tal como está, tal como a folha de um mestre antigo que tem na parte de frente e de trás dois desenhos do mesmo valor? (...) As cartas que permaneceram por muito tempo sem ser abertas adquirem algo de brutal; são deserdados que perfidamente, em silêncio, forjam a sua vingança dos longos dias de sofrimento. Muitas delas expõem mais tarde, nas vitrinas dos comerciantes de filatelia, os sobrescritos intactos repletos das marcas de fogo dos carimbos. (...)
Os selos estão pejados de numerozinhos, letras minúsculas e olhinhos. São tecidos celulares gráficos. tudo isto fervilha misturado e como os animais mais simples, continua vivo mesmo que feito em pedaços. Por isso é que, de bocadinhos de selos que se colam uns aos outros, se fazem imagens tão impressionantes. Mas nelas a vida tem sempre o cunho da decomposição, como sinal de que é composta do que já está morto. Os seus retratos e grupos obscenos repletos de ossadas e inumeráveis vermes. (...)
Selos de sobretaxa, são os espíritos entre os selos. Não se alteram. a mudança de monarcas e formas de governo passa por eles como por espíritos, sem deixar vestígios. (...)
A criança olha a distante Libéria através de uns binóculos de ópera colocados ao contrário: ali está elá, por detrás da sua réstia de mar, com as palmeiras exactamente como os selos a mostram. Com Vasco da Gama, veleja em torno de uma triângulo, que é equilátero como a esperança, e cujas cores se alteram com as mudanças de tempo. Prospecto de viagem de cabo da Boa Esperança. Quando vê cisne nos selos australianos então, mesmo sobre os valores azuis, verdes e castanhos, ele é cisne preto que só surge na Austrália e que , aqui, desliza sobre as águas de um lago, como sobre o mais tranquilo dos oceanos. (...)
É sabido que existe uma linguagem filatélica que está para a linguagem das flores como a alfabeto Morse para o alfabeto escrito. Mas por quanto tempo viverá ainda a profusão de flores entre os postes telegráficos? Não serão os grandes selos artísticos do pós-guerra, com a sua riqueza de colorido, já as sécias e dálias outonais desta flora? Stephan, um alemão, não apenas por acaso um contemporâneo de Jean-Paul, plantou, na metade estival do século XIX, esta semente. Ela não sobreviverá ao século XX.

Walter Benjamin , Rua de Sentido Único e Infância em Berlim por volta de 1900, Relógio d' Água.

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